A Perturbadora Invisibilidade das Pessoas com Deficiência nas enchentes do Rio Grande do Sul

Por Beto Pereira*

Enquanto as manchetes ecoam as perdas materiais e as vidas perdidas nas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul, o segmento das pessoas com deficiência clama por visibilidade e atenção.

Em meio ao caos das águas que inundam ruas e lares de muitos municípios, a invisibilidade desses indivíduos diante das tragédias naturais é gritante. A mídia e as redes sociais repercutem as perdas de carros, móveis e vidas humanas, assim como as perdas de animais, além, é claro, das milhares de pessoas desabrigadas e desalojadas.

Em um cenário de tais proporções, é evidente que toda perda deve ser considerada e lamentada. Ocorre que enquanto as câmeras captam os destroços e os rostos aflitos dos sobreviventes, a realidade dos cidadãos com deficiência não é sequer mencionada na maioria absoluta dos noticiários.

As políticas públicas e outras ações para enfrentar as consequências da tragédia em nossos segmentos são mínimas ou, em alguns casos, inexistentes. Contamos majoritariamente com iniciativas de nossas entidades, de voluntários e de outras pessoas solidárias conosco.

Se as catástrofes representam um grande desafio para todas as pessoas, para aquelas com alguma deficiência o desafio é ainda maior. Ruas alagadas se transformam em verdadeiros labirintos intransponíveis onde a falta de acessibilidade e de informações acessíveis coloca vidas em risco iminente.

Sem avisos sonoros, sem guias táteis, sem rampas e guias rebaixadas e comumente sem acessibilidade e suporte adequado nos abrigos e alojamentos, a maioria das pessoas com deficiência enfrenta uma batalha muitas vezes solitária.

Além de perder suas casas, muitos também perderam bengalas, óculos, lupas, muletas e outros recursos imprescindíveis para a acessibilidade e dignidade. Para agravar a situação, entidades especializadas nas demandas dessa parcela da população foram completamente destruídas e aquelas que resistiram tentam auxiliar no que podem, contando com ajudas esporádicas de alguns órgãos públicos, de instituições parceiras, da sociedade, inclusive das próprias pessoas com deficiência em condições de auxiliar.

Lembremos que a culpada pela catástrofe não é a natureza. A tragédia é causada pela ação humana, pelo negacionismo de muitos que ignoram os dados científicos e pela falta de políticas adequadas, assim como longe de ser culpa do acaso, a ausência de um planejamento adequado para resgatar, acolher e atender pessoas em situação de maior vulnerabilidade é consequência da ausência de uma política de colocar em prática estratégias de como atuar no resgate, no acolhimento e no atendimento de pessoas nessas condições.

Também é importante lembrar que, de acordo com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que possui status de emenda constitucional no Brasil, “em situações de risco, emergência ou estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, devendo o poder público adotar medidas para sua proteção e segurança”.

Talvez, a maioria das pessoas desconheça, mas cabe lembrar que instituído pela Portaria Interministerial nº 02, de 6 de dezembro de 2012, o Protocolo Nacional Conjunto para a Proteção Integral em Situação de Riscos e Desastres oferece subsídios aos gestores estaduais, municipais e distritais para garantir parâmetros de atuação uniformes de proteção de crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência em situação de desastre.

Elaborado por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) que contou com a participação de representantes da Casa Civil e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, além dos ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Justiça, da Integração Nacional, da Saúde, da Defesa e da Educação e ainda com a participação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o documento, que propõe a adesão voluntária de estados, municípios e Distrito Federal, bem como a criação de Comitês Gestores locais, ao longo de seus 12 anos, parece ter sido desconsiderado pelas autoridades.

É imperativo que toda a sociedade atue para que esses cidadãos não sejam deixados para trás em momentos de crise. A inclusão não pode ser apenas uma palavra vazia. Deve ser uma prática concreta em todas as esferas e em todos os momentos da vida, especialmente quando se trata de proteger os mais vulneráveis dentre os mais vulnerabilizados.

Algumas entidades, como a Associação Laramara e a Fundação Dorina Nowill, ambas com sede em São Paulo, fizeram doações de bengalas para pessoas com deficiência visual do Rio Grande do Sul. A organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB), entidade que atua na garantia e defesa dos direitos de aproximadamente sete milhões de pessoas cegas e com baixa visão, colaborou com alojamento e tem cobrado providências das autoridades, não apenas para o segmento que representa, mas para todas as pessoas com deficiência.

Dentre as principais solicitações estão: efetuar um levantamento urgente que identifique como estão e onde estão as pessoas com deficiência do estado; priorização do atendimento e assistência às pessoas com deficiência visual nos abrigos, garantindo que suas necessidades específicas sejam atendidas, incluindo acesso a alimentos, cuidados médicos e locais seguros para descanso; criação de programas complementares de transferência de renda, visando atender não apenas os beneficiários do BPC, mas todas as pessoas com deficiência que vivenciam tal situação de calamidade; e reparos e reestruturação em caráter de urgência das entidades que atuam na habilitação, reabilitação e defesa de direitos das pessoas cegas, com baixa visão e outras deficiências.

Ao longo de sua 325ª Assembleia Ordinária, ocorrida na semana passada, o Conselho Nacional dos direitos da Criança e do Adolescente aprovou, por unanimidade, o texto “Recomendações do CONANDA para a Proteção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Riscos e Desastres Climáticos”. O documento faz inúmeras referências às especificidades das pessoas com deficiência. outras instâncias de participação social também têm acompanhado a gravidade da situação. Esperamos que os documentos e discursos sejam transformados em ações concretas.

Na esperança de que as águas das enchentes recuem e de que a região comece a se recuperar, afirmamos que é fundamental que o debate sobre a inclusão das pessoas com deficiência em situação como esta avance e ganhe destaque. Para tanto, também é imprescindível que as entidades estejam mais unidas que nunca.
Nossas demandas não podem ser desconsideradas pela indiferença da sociedade e de autoridades. É hora de agir. É hora de garantir que ninguém seja deixado para trás, independentemente de religião, bandeira política e de qualquer outra especificidade.

*Beto Pereira é Sociólogo, jornalista, gestor em acessibilidade e, preside a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB).

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